O Acordeonista

O ACORDEONISTA
Gustavo Lopes Pereira (texto e fotos)

Era domingo, antes do almoço, e o sol de Abril aquecia alto no céu este subúrbio de Lisboa. Os subúrbios dormitórios de classe média são todos iguais nesta cidade. Prédios com cerca de cinco andares, uns mais baixos, outros mais altos, com pequenas varandas e marquises, misturando tons pastel claros com zonas demarcadas de azul, verde, amarelo, rosa, ou outra cor que algum morador se lembre de propor numa qualquer reunião de condomínio num desses prédios de subúrbio de classe média da grande cidade de Lisboa. Foi quando ouvi a música.

Não percebi imediatamente qual a origem do som que invadia o espaço público deste subúrbio domingueiro, sem a ninguém pedir licença. Foi então que o vi por entre sonolentas palmeiras suburbanas. Naquele espaço intersticial onde confluem as traseiras de duas séries ordenadas de prédios, no espaço da droga, dos ladrões de meia luz, dos passeadores de cães, um tocador de acordeão navegava sozinho a manhã de domingo. O seu ar compenetrado deixou-me pensativo. Parecia não estar ali, mas, ao mesmo tempo, não podia estar em nenhum outro lado. Era ali que pertencia. Tocava, e tudo fazia sentido naquele espaço, naquele momento.

A princípio pensei que seria um morador a aproveitar a frescura de um dos primeiros dias de calor do ano para dar largas à sua criatividade de fim-de-semana, mas logo confirmei que a classe média já não desce à rua para ensaiar ou fazer fogueiras. Este tocador de acordeão não mora no bairro e a sua relação com ele permanece até hoje um mistério. Aquilo que posso contar foi o que ouvi dizer: que se trata de alguém que “antigamente passava por ali com frequência” e que “já não aparecia há algum tempo” – este maestro do entretenimento das horas vagas. Se tivesse que adivinhar, diria que tem cerca de 90 anos e que se ausenta do lar onde vive para dar estes pequenos concertos de rua, para quem os quiser ouvir. Pela dureza das mãos, passou a vida a servir os outros, em trabalhos duros, na agricultura ou na construção civil. Foi servente. Tem no entanto uma alma de poeta, que o distingue de todos os outros serventes e tocadores amadores, pai, irmãos e outros de linhagem desconhecida. Aprecia as melodias clássicas e admira Eugénia Lima, a maior tocadora de acordeão de todos os tempos. Pelo repertório, de música popular, foi activo em grupos de baile, pelo menos até à disseminação do órgão electrónico matar as bandas e o seu instrumento de eleição. Mas a música segue. O acordeonista opera alheado das minhas conjecturas. As pessoas acodem à janela, querem dizer-lhe que se sentem tocadas com a sua música, falar com ele, olhá-lo, retribuir a sua generosidade. Mas ele já não ouve bem e continua o seu concerto, indiferente.

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