O retorno da fotografia analógica

Com o aparecimento das câmaras fotográficas digitais e a expansão dos smartphones a fotografia analógica parecia votada ao desaparecimento. A realidade mostrou o contrário. Uma nova vaga de amadores da fotografia fecha-se em laboratórios escuros e povoados de vapores químicos para produzir imagens de forma tradicional. Em Lisboa, são os mais jovens que reivindicam este movimento. Em defesa do objecto e da memória.

Gustavo Lopes Pereira (texto e fotos)


A escuridão é total, apesar de lá fora ainda ser dia. Tiago Manuel deixa-se guiar pela memória e pelo tacto enquanto insere o filme fotográfico numa pequena espiral de plástico. O processo é delicado. A emulsão foto-sensível que cobre aquela fina tira de celulose pode riscar-se facilmente, danificando as imagens registadas nos sais de prata que, nesta fase, ainda não são visíveis. A espiral é então colocada dentro de um pequeno tanque concebido para permitir a entrada e saída de líquidos, em completa obscuridade. A partir desse momento, o processo de revelação pode ser feito às claras. Acende-se a luz.

“Agora está muito na moda a cena da fotografia analógica”, considera Tiago, enquanto vai agitando o pequeno tanque, seguindo o ritmo indicado pelo cronómetro do smartphone pousado na bancada. Para o estudante de engenharia biomédica de 20 anos, a maioria das pessoas sente-se atraída por aquele tipo de fotografia “porque as fotos ficam diferentes”, mas são poucas aquelas que têm curiosidade para aprender mais.

A primeira fase da revelação de filmes é a preparação dos químicos.

Foi através de dois amigos que chegou ao Núcleo de Arte Fotográfica (NAF) do Instituto Superior Técnico, situado no Campus de Lisboa. Dada a capacidade dos telemóveis actuais, nunca teve curiosidade de comprar uma máquina fotográfica digital, mas quis saber como se processa uma fotografia a preto e branco. “É mais interessante porque estás a trabalhar uma foto do princípio ao fim e a fazê-la como queres.”

Na óptica de Tiago, os limites físicos da fotografia analógica têm implicações importantes na autenticidade das imagens produzidas. “Para não gastar muito filme tiramos só uma ou duas fotografias. Se ficar bem, ficou. Acho que os momentos que ficam gravados acabam por ser mais genuínos”, refere enquanto despeja fixador para dentro do tanque.

Para Tiago Manuel, a fotografia analógica tem um carácter mais genuíno.

Batem à porta: “Como é que está a correr? Estás em que parte? No revelador?” A curiosidade é de Ana Caracol, formadora do curso de fotografia analógica do NAF e actual Presidente de Direcção do núcleo. Neste dia está também a dar apoio ao laboratório comunitário que todas as quartas-feiras acolhe quem quiser revelar rolos, imprimir fotografias em papel, ou passar para formato digital fotografias analógicas – a chamada “4aberta”.

O Núcleo de Arte Fotográfica do Instituto Superior Técnico fará setenta anos em 2021. É a secção autónoma mais antiga da Associação de Estudantes do instituto. Apesar de ter começado como uma iniciativa de docentes e alunos da casa, actualmente “é um espaço de trabalho e um grupo de apaixonados pela fotografia”, quer frequentem a universidade ou não.

Ana Caracol é Presidente de Direcção e formadora do NAF.

“Amadores ou profissionais, os nossos colaboradores são todos fotógrafos. É isso que nos une: o gosto e o prazer de fotografar e de falar de fotografia.” Esta concepção está na base da ideia de laboratório comunitário que se materializa na “4aberta”. Se num primeiro momento cada fotógrafo desenvolvia o seu trabalho de forma isolada, o encontro começou a proporcionar a troca de experiências e a entre-ajuda. “A ideia de comunidade parte da ideia de colaboração entre as pessoas”, considera Ana Caracol.

Do ponto de vista da participação, nem sempre o núcleo teve o mesmo dinamismo. Actualmente, segundo Ana, está numa fase ascendente. Existe um revivalismo e um gosto pelo vintage que tem trazido muitos jovens ao laboratório, principalmente millenials e estudantes universitários. “Há dois tipos de pessoas que passam pelo NAF. Pessoas que conheceram a fotografia analógica na viragem para os vinte anos e pessoas que nunca deixaram a fotografia analógica. É um processo que lhes faz sentido. Que produz os resultados que querem que produza.”

Os filmes de médio formato possibilitam um maior detalhe nas imagens finais.

Um factor de atracção deste tipo de fotografia parece ser o seu carácter artesanal, que “permite uma envolvência diferente do digital”, refere Ana. Da mesma forma, Tiago Manuel considera que “é um processo mais criativo, mais prático”, onde se tem o gozo e o prazer de “trabalhar com as mãos”.

Toca o alarme. O filme está revelado e devidamente fixado. É agora altura de o lavar e secar, antes da impressão da imagem no papel.


O quarto da luz vermelha

Hoje é um dia ocupado no laboratório. Sob uma parca luz de tom ocre, cinco jovens manipulam os velhos ampliadores meopta que ocupam três das quatro paredes da sala de impressão do NAF. Cronometrados de forma precisa por relógios dedicados, feixes de luz são projectados intermitentemente por aquelas máquinas, impressionando imagens latentes no papel fotográfico que vai sendo inserido no seu eixo de acção.

O papel fotográfico a preto e branco não é sensível à luz vermelha.

“O negativo que estou a trabalhar é um bocado difícil. Ficou muito exposto. Estou a tentar puxar pelo contraste, mas vai ser difícil”, refere Alexandre Machado, dando conta da persistência de que é necessário dispor para este tipo de trabalho. Para o engenheiro informático de 26 anos, esta qualidade da impressão fotográfica a preto e branco “é metade da diversão”.

Foi o fascínio pelo “mecanismo” que atraiu Alexandre à fotografia analógica. Os processos tecnológicos antigos interessam-lhe e a fotografia aparece como uma justificação “para ser mais nerd sobre uma coisa”. Ao mesmo tempo, o espaço do laboratório possibilita experiências sociais e pessoais que valoriza: “Conhecer outras pessoas, saber o que elas gostam, estar na minha paz, absolutamente tranquilo da vida, a fazer as minhas fotos.”

Alexandre Machado exibe uma câmara de médio formato que adquiriu recentemente no mercado de usados.

No centro da sala, numa bancada com três tinas de plástico contendo soluções químicas que permitem revelar e fixar a imagem no papel, Joana César dedica-se ao que mais gosta no laboratório: “estar no revelador e ver a imagem a aparecer.” O cheiro dos químicos parece não a incomodar. Tem 21 anos e, como fotógrafa de profissão, tem uma preocupação particular: “se no futuro não houver mais ecrãs, como é que vou mostrar aos meus filhos o que fiz?”

Em termos de trabalho, Joana admite que a fotografia digital tem vantagens do ponto de vista da rapidez de execução e da redução de custos. Mas o carácter nostálgico e palpável da fotografia analógica é algo que a convoca para o laboratório. E não tem dúvidas que é uma prática que “está na moda”. Prova disso é que segue “muita gente no instagram que usa máquinas descartáveis. Imensas pessoas que usam e estão sempre a revelar.”

Joana César é fotógrafa de profissão e uma das frequentadoras do laboratório comunitário do NAF, às quartas-feiras.

Também Rodrigo Veríssimo, cientista de dados de 26 anos que trabalha com inteligência artificial e que está no laboratório pela primeira vez, procura encontrar a longevidade na fotografia analógica. Depois de perder todas as imagens que tinha até 2018, quando o computador de casa avariou, procura garantir a manutenção da memória através do recurso a um formato que “até pode ser digitalizado, mas cuidando minimamente o suporte físico, dá para durar muito tempo.”

Na realidade, a fotografia que se faz no laboratório comunitário do NAF parece ser uma espécie de fotografia híbrida. O registo da imagem é feito em filme, segundo o processo físico-químico tradicional. Mas o destino final da imagem pode ser digital, através do recurso a scanners de imagem, ou, para as “melhores fotografias”, a impressão em papel, que tem um custo mais elevado e exige mais tempo.

Uma turma de fotografia do NAF analisa provas de impressão durante uma aula de laboratório.

Qualquer que seja o caso, como dá conta Ana Caracol, “o digital veio para ficar e é a forma mais massificada de fazer fotografia, mas o momento para nos assustarmos já passou”. A fotografia analógica “vai encontrar o seu lugar como nicho. É como o rock n´roll. Nunca vai morrer”.

No fundo da sala, água corre vagarosa e incessantemente para um tanque, lavando o que resta dos químicos no papel impresso, para que este possa finalmente cumprir a sua função de guardião da memória dos Homens.

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